sábado, 30 de junho de 2007

Admirável Livro Velho

   Existem vários livros que todos devem ler ao menos uma vez na vida. Admirável Mundo Novo é um deles. Um dos fatos mais surpreendentes no romance de Aldous Huxley é que, como acontece com alguns outros grandes clássicos, suas histórias e predições por vezes parecem pertencer a um futuro alcançável e próximo, ao mesmo tempo em que, a depender do olhar, podem representar uma metáfora do presente. Acredito que é aproximadamente isso o que vêm pensando também seus outros leitores ao longo das últimas décadas.
   A história, publicada em 1931, é futurista (“mas não de Marinetti!”), classificada como distópica e representa uma reflexão crítica sobre o futuro da humanidade. Sob a máxima “Comunidade, Identidade, Estabilidade” encontramos uma sociedade onde o fordismo revigorou-se até um ponto extremo. Henry Ford (1863-1947) é considerado uma espécie de messias sendo reverenciado por toda a população civilizada. Com mais exatidão, Huxley acreditava que a sociedade chegaria a esse patamar no século VII "depois de Ford" - como conta o calendário do Novo Mundo.
   Fazendo referência à Matrix podemos também dizer que “existem campos sem fim onde os humanos não nascem mais, são cultivados”. Os campos, no entanto, são os laboratórios do D.I.C. (Centro de Incubação e Condicionamento), onde humanos são criados em proveta e, muitas vezes, clonados em grande número. O Estado é responsável pela educação das crianças e a Família foi abolida. Assim como a religião, a monogamia, o pudor e a senilidade. Desde apenas fetos, até sua morte, todos são condicionados para agirem de acordo com sua localização em um funcional sistema de castas.
   Revoltante? Não para os civilizados de Huxley. O ponto-chave dessa sociedade é que todos seus homens e mulheres são completamente felizes.

E é aí - disse sentenciosamente o Diretor, à guisa de contribuição ao que estava a ser dito - que está o segredo da felicidade e da virtude: gostar daquilo que se é obrigado a fazer. Tal é o fim de todo o condicionamento: fazer as pessoas apreciarem o destino social a que não podem escapar. (HUXLEY, 1931, p. 12)


   A felicidade constante é obtida não só pelo complexo – e completo – condicionamento. O Soma é a fuga dos problemas de toda e qualquer pessoa desse futuro. A droga sem efeitos colaterais aparentes é o que acalma a população e ajuda a fugir de qualquer conflito que se possa vivenciar. Qualquer mínimo tormento é rapidamente dissipado com gramas de soma, o que garante que todos os indivíduos mantenham-se submersos na aceitação. É exatamente isso o que garante a estabilidade desse mundo.
   Porém, como em qualquer sociedade aparentemente concebida como perfeita, existem casos de fuga nos padrões. Os homens que acabam por “despertar para a vida” são rapidamente excluídos, não apenas pelo próprio Estado como também por todos aqueles com quem convivem. Os “excêntricos” são mandados para Ilhas e vivem numa comunidade, de certa forma, excomungada e, portanto, mais esclarecida.

[...] A sua elevada condição intelectual cria também responsabilidades morais. Quanto maior é a capacidade de um homem, mais possibilidades têm de desencaminhar os outros. [...] (id, p. 68)


   Em outra interessante face de todo o processo, Reservas de Selvagens foram construídas em locais considerados inúteis fisicamente e são habitadas pelos homens que foram deixados, desde o começo, à mercê da nova ordem. Apenas alguns poucos civilizados de castas superiores têm o direito de fazer visitas a esses locais. Ao encontrarem uma cultura completamente diferente, por serem condicionados, consideram-na abissal e a menosprezam.
   No mundo civilizado, técnicas avançadas de contracepção são ensinadas às mulheres que não mais engravidam. Sob a idéia de que “Cada um pertence a todos”, conceitos como mãe e pai são considerados ofensas obscenas e a idéia de família não entra em suas cabeças.
   Há, também, uma desvalorização do passado e da história. Só lhes importa o presente, o que é novo. Cantores, obras literárias, personagens famosos, datas históricas: tudo foi abandonado para o bem da sociedade. Sobraram poucos, muito poucos, nomes aos quais referências ainda são feitas, sob a autorização da Administração Mundial, por ainda condizerem com suas idéias. Ainda assim, qualquer culto ao passado é inadmissível.
   Um dos fatos mais notáveis desse novo mundo é a forma como uma política de impessoalidade pôde contribuir para a própria felicidade individual. O Estado está tão preocupado com sua ordem, com seu sistema, que procura garantir o bem-estar psicológico de todos os homens. Quando lhe é questionado se ao humano não é necessário um pouco de tristeza, de adrenalina e de emoções fortes, que somente a desgraça pode trazer, o Administrador Mundial responde dizendo que

[...] Foi por isso que tornamos obrigatórios os tratamentos de S.P.V - Sucedâneo de Paixão Violenta. Regularmente, uma vez por mês, irrigamos todo o organismo com uma torrente de adrenalina. É o equivalente fisiológico completo do medo e da cólera. Todos os efeitos tônicos provocados pelo assassínio de Desdêmona e pelo fato de ser assassinada por Othello, sem nenhum dos seus inconvenientes. (ib, p. 109)


   É exatamente isso. A sociedade é tão aperfeiçoada que fez questão de livrar-se, com recursos científicos, de todos os inconvenientes possíveis para manter-se inabalável. Não cabe mais ao homem os sentimentos verdadeiramente humanos, porque são esses sentimentos os que nutrem a revolta e o descontrole social. A felicidade é tão presente que lembra o que diz Orwell no também polêmico 1984: “Guerra é paz”.
   A guerra constante do mundo de Orwell torna-se paz justamente por ser constante – e aqui podemos fazer um paralelo e entender porque a violência foi banalizada em nosso mundo, porque não nos assustam mais as notícias terríveis dos noticiários – e, creio, a felicidade constante do mundo de Huxley torna-se uma espécie de guerra para todos aqueles que não estão habituados a ela.

[...] A felicidade real parece sempre bastante sórdida quando comparada com as largas compensações que se encontram na miséria. E é evidente que a estabilidade, como espetáculo, não chega aos calcanhares da instabilidade. E o fato de se estar satisfeito não tem nada do encanto mágico de uma boa luta contra a desgraça, nada do pitoresco de um combate contra a tentação ou de uma derrota fatal sob os golpes da paixão ou da dúvida. A felicidade nunca é grandiosa. (ib, p.101)


   Talvez o que nos choque em todos estes romances distópicos seja perceber as verdadeiras faces do homem. Ficamos boquiabertos ao encontrar sociedades onde a maneira humana de ser leva a uma realidade um tanto quanto desumana, mas, provavelmente, também ficaríamos assim se, uma vez fora dela, conhecêssemos nossa própria sociedade.
   As predições de Huxley, Orwell, dos irmãos Wachowski e de tantos outros autores não são apenas predições, são reflexos da nossa própria realidade e de seus possíveis desdobramentos. É crível que possamos mesmo caminhar para um não tão admirável Mundo Novo, assim como nos submeter aos olhos do Grande Irmão ou à falsa realidade da Matrix, mas mesmo essas sociedades talvez não sejam tão inaceitáveis quanto a nossa. As possibilidades do futuro podem ser assustadoras, mas devemos ter consciência de que o presente já é assustador o bastante para ser julgado da mesma forma.
   Parafraseando Agatha Christie, ao falar de seu próprio livro: Todas estas histórias não são impossíveis, apenas fantásticas.

por Emilãine Vieira
Referência: HUXLEY, Aldous. Admirável Mundo Novo. 2 ed. São Paulo: Globo, 2001.

3 comentários:

Unknown disse...

é emi, uma grande jornalista o/
dá medo, talvez o novo mundo aconteça não apenas por maldade, mas pelo bem que não vai mais habitar na Terra.
perfeita, você ;*

Mi do Carmo disse...

Eu li a metade. Parei para fazer a monografia e nunca mais voltei. Ainda não sei porquê...Mas taí, vc me estinulou a terminá-lo.

;)

Anônimo disse...

Muito, muito interessante esse texto. É estranho ver que em alguns pontos o 'admirável mundo novo' já se tornou velho, pois os pontos comuns com a realidade em que (sobre)vivemos são gritantes...